terça-feira, 14 de maio de 2013

A Cantiga da Roda

                        A Cantiga da Roda


Em finais da década de sessenta, Salazar já não se encontrava à frente dos destinos de Portugal, o interregno marcelista começara e uma época na vida da nação aproximava-se a passos largos do seu fim; mas para os dornelenses, perdidos no interior da Beira, muito longe dos centros de decisão e servidos por fracas vias de comunicação, tais acontecimentos pareciam muito distantes, como se pouco ou nada tivessem a ver com elas. A sua vida prosseguia sossegada... Subitamente a pacatez da aldeia foi quebrada pela chegada de um forasteiro, que – e isto causou estranheza – parecia mostrar interesse por velhas canções regionais, por melodias locais a que ninguém ligava a mínima importância. O seu nome era Michel Giacometti , etnomusicólogo francês de origem corsa, radicado havia cerca de dez anos em Portugal e que logo depois de chegar dera início a um exaustivo trabalho de recolha e gravação de música popular portuguesa. Com efeito, ao longo de três décadas, haveria de percorrer o país, de Norte a Sul, até às localidades mais remotas e esquecidas, recolhendo, de forma cuidadosa e perseverante, as genuínas expressões musicais do nosso povo, gravando centenas de cantigas e músicas tradicionais, dando assim origem àquele que é, ainda hoje, o mais completo levantamento da cultura musical portuguesa .
Mas não nos desviemos da narração... No decurso de uma pesquisa etnográfica que decorreu, de Agosto de 1968 a Outubro de 1970, nas Beiras Litoral e Interior, Giacometti passou, como já referimos, por Dornelas dando-se rapidamente conta da íntima relação que os habitantes locais partilhavam com o rio. Tratando-se de uma aldeia virada para o Zêzere, construída em torno dele, é natural que este rio, ao longo dos séculos, tenha fortemente regulado a vida dos seus habitantes. Se, por um lado, retiravam dele uma parte relevante da sua subsistência, por via das culturas nos lodeiros, por outro moldaram-no, por meio de presas (represas) e açudes, para que se adaptasse às suas necessidades. A água retida nestes era posteriormente utilizada para irrigação: permitia fazer mover rodas (ou noras) construídas em madeira de pinheiro, às quais eram adaptadas lateralmente tábuas que, pela força da corrente, impulsionavam o seu movimento. Nas mesmas rodas eram também colocados púcaros de barro, que recolhiam e conduziam a água até um tabuleiro de madeira, fixado na parte superior das mesmas. Aí a água era despejada seguindo por uma caleira (também de madeira) até uma levada de terra que a conduzia a uma presa, onde ficava armazenada. Dornelas possuía cerca de uma dúzia destas rodas ao longo do rio confinante e outras de menor dimensão no interior da freguesia, junto a poços e pequenos ribeiros. Foram estas últimas que impressionaram sobremaneira Giacometti, por serem movidas pela força humana: era habitualmente uma mulher (os homens, por serem mais fortes, encarregavam-se dos trabalhos mais pesados) que subia para a roda e, sob a pressão dos seus pés a fazia mover. Para quebrar a monotonia e a rudeza da tarefa, entoava horas seguidas uma cançoneta...
O repertório destas mulheres não se limitava a uma única canção ; mas Giacometti registou apenas uma, naturalmente designada por «Cantiga da Roda». Segundo o etnólogo francês: «Trata-se de uma bela melopeia modal, de um modalismo orientalizado pela presença do intervalo de segunda aumentada. Entoada por uma voz feminina (a tocadora da roda), tem a sua como que contrapartida diafonal na plangente melopeia da nora. A entoação nem sempre é segura, em consequência do penoso esforço físico exigido pela manobra.» A letra é a seguinte:
Ai, Borda d’Agua, Borda d’Agua,
Ai, Borda d’Agua, Santarém;
Borda d’Agua, Santarém...
Ai, vale mais uma Borda d’Agua
Ai, que quanto Lisboa tem.
Borda d’Agua, Santarém...
Ai, ó mar largo, ó mar largo,
Ai, ó mar largo, sem ter fundo;
Ó mar largo sem ter fundo...
Ai, vale mais andar no mar largo
Ai, que andar nas bocas do mundo.
Ó mar largo sem ter fundo...
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Pouco tempo depois de concluída a recolha, e em colaboração com o Maestro Fernando Lopes Graça, Giacometti publicou o disco «Beira Alta, Beira Baixa, Beira Litoral – Antologia da Música Regional Portuguesa», integrado numa colecção de cinco discos (os velhinhos LP – Long-Play – de vinil), editados pelos Arquivos Sonoros Portugueses, que os amantes da música tradicional passaram a conhecer como colecção da serapilheira (fig. 2), pois eram vendidos revestidos em bolsas de serapilheira de várias cores, revestimento esse que, apesar de estranho e árido ao toque, constituía uma fabulosa síntese dos seus conteúdos musicais.
Para a pequena história assinale-se que, na década de sessenta, a senhora Apolinária (Fig. 3), dona de uma bela voz, era considerada a melhor cantora da roda em Dornelas; no entanto a gravação foi efectuada pela D. Maria Trindade Baptista o que, segundo consta, lhe custou uma forte repreensão do marido por ter cantado para pessoas estranhas.
Poucos anos após a gravação desta música, em finais de Outubro de 1971, Dornelas passou a integrar a rede eléctrica nacional; rapidamente a irrigação dos campos começou a ser feita usando motores a dois tempos, que puxavam a água sem implicar esforço humano. As poucas rodas, que durante algum tempo perduraram, passaram a ser quase exclusivamente movidas a motor; e a cantiga da roda, testemunho dos tempos de outrora, só não foi esquecida devido à gravação efectuada em boa hora por Giacometti.
Este etnógrafo (também conhecido por, durante três anos, ter realizado para a RTP o programa «Povo que cantas») faleceu em 1990 tendo deixado um vastíssimo legado sob a forma de discos, livros e objectos próprios da actividade rural – muitos destes encontram-se no Museu do Trabalho, em Setúbal –, assim como uma colecção de arquivos sonoros, cancioneiros, obras de musicologia, filologia, literatura popular e instrumentos musicais por ele vendidos, ainda em vida, à Câmara Municipal de Cascais; esta câmara mais tarde instalaria este espólio no Museu da Música, situado na Casa Verdades de Faria.
Em 1998 os cinco discos da «Antologia da Música Regional Portuguesa» foram reeditados (fig. 4), o que proporcionou um «segundo alento» à canção da roda. Com novos arranjos da autoria do compositor Eugénio Rodrigues, vários coros de música clássica (mas com interesse pelas melodias folclóricas) passaram a integrá-la no seu repertório, nomeadamente os Coros Polifónico Eborae Musica e Ricercare. Refira-se ainda que um grupo intitulado «Chuchurumel», composto por César Prata e Julieta Silva, dedicado à divulgação da música da Beira Interior (com especial incidência sobre a da Beira Alta), a incluiu num seu álbum, editado no 1º semestre de 2005.
E quanto à famosa roda, sem a qual nada disto teria sido possível? Terminado o seu «tempo de vida», foi completamente esquecida?
Felizmente, não.
A exemplo do que sucede em Tomar que ostenta orgulhosamente – como cartão de visita – uma roda a recolher a água do rio Nabão, também Dornelas do Zêzere instalou uma, junto da actual piscina-represa (fig. 5) , próximo da placa com os versos «A minha aldeia», do jovem poeta Júlio Dias Nogueira, falecido em 1939, com 17 anos de idade. E não se ficou por aí: esta aldeia, que sempre se tem mantido fiel às suas origens, colocou duas rodas no, recentemente aprovado, brasão da freguesia, recordação de um passado, ainda não muito longínquo, num símbolo que fica para o futuro.


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